18 de jan. de 2011

CATÁSTROFE E HIPOCRISIA


No meio da rua, a lama se mistura aos corpos já em putrefação. Carros que vão parar no telhado das casas. Centenas de casas que não existem mais, arrastadas pela força inconteste das águas. Milhares de cidadãos assolados por uma catástrofe. Cenas e cenários de uma tragédia tão anunciada quanto recorrente. É hipocrisia não querer buscar os culpados. Aliás, não buscá-los é exatamente o interesse do poder público brasileiro. Porque eles existem e estão ao alcance dos nossos olhos e de nossa consciência. No entanto, parece muito fácil culpar São Pedro, a população e o Estado pela devastação na Região Serrana do Rio de Janeiro. O buraco é mais embaixo e precisa ser citado nominalmente para que possamos fazer valer nossa Justiça e para que catástrofes futuras sejam, no mínimo, amenizadas.

O conceito de Estado é muito vago e abstrato. No que tange à responsabilidade fiscal e penal então, não alcança quase ninguém. O primeiro grande passo que a Justiça brasileira pode dar para colocar fim nessa vergonha que é a impunidade, é começar a responsabilizar criminalmente pessoas, suas excelências eleitas para os cargos majoritários do Poder Executivo – em todas as esferas: federal, estadual e municipal – e todas as figuras por eles nomeadas para compor os escalões de seus governos. Enquanto continuarmos nesse balela de responsabilizar apenas o Estado, num contexto tão amplo quanto confuso, jamais poderemos nos classificar como democracia plena ou, simplesmente, como um país justo e honesto.

A tragédia que se abateu sobre a Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro, apesar de sua dimensão histórica, não é a primeira e, pelo visto, não será a última e é um exemplo em curso da impunidade que varre e assola o Brasil. Toda essa região da Serra do Mar fluminense é crítica e geologicamente propícia a grandes erosões e deslisamentos, além de frequentes enchentes e alagamentos. Com a alienada ocupação do solo, sem fiscalização ou controle, a situação torna-se pior. Ainda assim, em 2009, um estudo do Ministério do Meio Ambiente em parceria com o próprio Governo do Estado do Rio de Janeiro, apresentou um diagnóstico assustador para 15 municípios fluminenses, entre eles, todos os que hoje estão destruídos na serra.

Ou seja, há 2 anos o Estado já dispunha de um estudo técnico colocando os municípios serranos como de “alta prioridade”, apontando a urgência na desocupação de centenas de áreas consideradas de “alto risco”. Em Teresópolis, por exemplo, o documento aponta regiões onde a totalidade dos imóveis – isso mesmo, 100% das casas – estão em situação de risco. No mesmo estudo, os técnicos afirmam que a maioria das prefeituras não tem estrutura para evitar as ocupações irregulares, quiçá para retirar dessas áreas as centenas de famílias ameaçadas. Além disso, por si mesmas, essas famílias não desocupariam tais regiões.

O que o governo estadual fez? Nada. Absolutamente nada. Com a máquina nos rumos da iniquidade e a dominação do funcionalismo público por facções políticas fluminenses, o Governo do Estado do Rio de Janeiro simplesmente engavetou o assombroso estudo técnico-ambiental na poeira de suas gavetas caindo aos pedaços. E muito além da ineficiência, qualquer ação governamental para amenizar as constantes tragédias com as chuvas no estado, teoricamente poderiam ser medidas difíceis e gerar pontos negativos na imagem do governador e de sua equipe às vésperas do processo eleitoral que o legitimaria por mais 4 anos no cargo com mais de 60% dos votos. O resultado de tudo isso é o que estamos vendo: a maior catástrofe da história do Brasil.

E agora, a quem responsabilizar? À torneirinha de São Pedro? É certo que as condições geográficas e climáticas e o nível de irregularidades nas ocupações do território tem sua parcela de culpa. Mas não podemos ser hipócritas e evitar o confronto direto com a responsabilidade do governador Sérgio Cabral, de seus secretários de estado, dos prefeitos municipais e dos demais poderes instituídos no Estado do Rio de Janeiro. Responsabilizá-los criminalmente pelo homicídio culposo de, até agora, mais de 600 pessoas, com os agravantes da inobservância de regras técnicas da profissão e por não procurar diminuir as consequências do crime seria o primeiro passo contra a impunidade indecente no Brasil.

Faço questão de somar minhas palavras e minha revolta aos textos primorosos e indignados sobre o assunto, publicados nesta semana, pelos colegas jornalistas e colunistas Eliane Cantanhêde e Marcos Sá Corrêa. Como bem disse Eliane, “se não vai por bem, vai por mal, na base da ameaça” e como afirmou Marcos Sá, “o remédio é responsabilizar homens públicos – e não abstratamente o Estado – pelos crimes que cometem contra a vida”. Enquanto continuarmos no nosso confortável assento da hipocrisia e da leniência, outras catástrofes – ainda piores – virão e devastarão centenas e até milhares de famílias. Talvez o dia em que maus políticos e péssimos administradores públicos começarem a conhecer, de fato, as 4 paredes de um xilindró, essa nossa triste e trágica realidade possa ter alguma esperança de tempos melhores. Enquanto isso não acontecer, seguiremos bancando as mordomias e ilicitudes de uns poucos e contabilizando nossos mortos na outra extremidade.

*HELDER CALDEIRA

Escritor, Colunista Político, Palestrante e Conferencista

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